quarta-feira, 10 de junho de 2015

Um conto sem ponto

Daqui

A foto foi mal feita, havia sido revelada por engano junto com as outras daquela viagem. Marcília aparecia sozinha, sorrindo muito, e foi justamente por essa felicidade que essa fotografia tinha sido conservada. Dentro de um livro, durante anos, uma mulher bonita e radiante estava à frente do mar aberto e via-se, olhando com atenção, o ombro no qual sua cabeça tocava.
Alguns momentos são ideais para encontros inesperados. Uma mudança de casa e a necessidade de embalar tudo, desfazer-se de alguns pesos que receberam carga de afeto no passado e agora já não passam de...coisas. 
Livros que não serão mais lidos vão sendo separados para doação e aqui-ali se encontra um bilhete, marcador de página amarelado, conta paga, um casal pela metade.
Foi o que a fez perder o ritmo. Buscava, olhando a foto, lembrar o motivo da separação, mas as lembranças daquele dia vieram tão nítidas que o cheiro de maresia inundou a sala e embaçou seus olhos. A pele morena com uma flor de sal deixada pelo mergulho no mar fez o rosto de Marcília enrubescer e voltou-lhe aos lábios o sabor do homem que sempre descompassou seu corpo inteiro. Em segundos o apartamento virou o pano de fundo de cenas de beijos, carícias, abraços, sussurros, sorrisos, olhares. Onde estavam as palavras? Não havia a menor lembrança da voz dele, não lhe ocorreu nenhuma frase, diálogo, promessa ou discussão. Uma gaita, no entanto, ia e voltava ensaiado um bolero antigo. Era essa a voz dele dentro dela.

Se apenas o prazer lhe corria nas veias agora, o que ela fazia naquele piso bagunçado e sujo e sem qualquer fotografia do homem onipresente?

No único móvel restante no ambiente, uma mesa de canto, o impresso foi colocado. Escorado na parede, pousado como se estivesse num porta-retrato agora era ele quem observava a mulher separando os livros, metodicamente folheando-os. Rasgava a dedicatória que porventura houvesse naqueles que seguiriam em breve para alguma biblioteca pública e os demais tinham por destino uma caixa plástica. Concentrada, absorta, sem distração alguma, rapidamente guardou tudo e preparou-se para sair.

O banho rápido denunciava o atraso para um compromisso importante. O vestido estampado com flores miúdas sobre o fundo amarelo opaco iluminou ainda mais seu rosto encantador e cachos despretensiosamente penteados pendiam sobre as costas em decote.
Havia sempre uma caneta na bolsa. Comprava-as sem muito critério e sorriu ao ver que a tinta que riscava o verso da foto era cor-de-rosa e exalava perfume adocicado. O calor inusitado daquele dia a fez pensar se seria mesmo a hora ideal para ir, mas prontamente desfez-se da ideia de atrasar ainda mais.
Uma espiada pela janela trouxe a voz dele a seus ouvidos. Soou como pancada de porta fechada pelo vento. Ah, o vento! Esse não sabedor de limites, eterno viajante a quem pouco importa o fechar e bater de portas atrás de si, o baque de objetos ou o ar que se vai no susto causado.
Havia escrito seu nome e telefone. Desviando o olhar do céu ensolarado escreveu a exata frase que ouviu dele naquele passeio que, sem saberem então, marcaria seu último encontro.


Quem mais neste mundo entrega correspondência em mãos e ainda por cima em envelope branco? A tinta rosa destacava-se lá dentro e embora não fosse possível ler o que estava escrito a letra ligeira e desenhada rasgou-lhe o sorriso no cenho que tornou-se franzido quando o porteiro fez sinal para abrir a janela, acenando com o envelope.

MARCÍLIA
 5438-4321
"Estou te esperando desde ontem"


Pediu que o portão fosse reaberto e, enquanto para ele o mundo dos ponteiros funcionava ao contrário, o telefone dela atendeu ao segundo toque, ele reviu a antiga fotografia e disse:

- Estou indo. Espere só um pouco mais. Espero desde aquele dia...

6 comentários:

Michele disse...

Que profundo seu conto Patrícia! Eu adorei, muito bem escrito, me envolveu até o final e me deixou emocionada no "Espero desde aquele dia..." =)

Beijos
Michele
www.gotinhasdeesperanca.com

Patrícia Santos Gomes disse...

Ai, que bom que gostou, Mi!
Muito obrigada pela visita <3

Ana Paula disse...

Adorei seu conto! Detalhes que nos transportam como a caneta de tinta cor de rosa e ainda com cheirinho!
beijo.

Luma Rosa disse...

Oi, Patrícia!
Gostei demais!! Deve escrever mais crônicas...
O amor que vemos partir pode estar nos esperando. Melhor correr o risco do que não vivê-lo!
Beijus,

Patrícia Santos Gomes disse...

Obrigada, Lumita!
Tenho algumas guardadas, vou começar a postar.
Bessos e obrigada pela visita, amora!

Patrícia Santos Gomes disse...

Oi, Ana! Gostosinho, né? Quando termino um texto assim fico surpresa com o final, leio como se estivesse vendo pela primeira vez, geralmente começo sem saber como vai terminar. Ou penso que será de um jeito e fica de outro ou simplesmente não sei mesmo.
Obrigada pela visita e pelo comentário _/\_