quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Sobre viver o dia

Imagem daqui

Já havia morado aqui antes, mas quando a cidade era menor, ou mais tranquila, ou menos movimentada. Trabalhar e morar agora parece uma aventura devido às distâncias que preciso percorrer e as novidades que encontro quase diariamente.
À noite, retornando para casa desço do ônibus numa praça imensa, que as pessoas sempre atravessam como se monstros habitassem a sombra de alguma das raras árvores que resistiram ao tempo e descuido. Às vezes uso o celular (errado, concordo), mas geralmente caminho devagar, observando as pessoas, o local, o movimento e é assim que chego ao lado oposto tranquilamente e espero o sinal sonoro me fazer olhar os veículos pararem para atravessarmos. É uma coisa que dá poder isso de caminhar na faixa de pedestres sabendo que dezenas de pessoas estão nos olhando, aguardando, salivando com a demora extrema de alguns segundos imobilizadores. De tanto fazer o trajeto ganhei a noção exata do tempo necessário para atravessar minha passarela imaginário e colocar meu último salto na calçada, liberando a tráfego dos veículos.

Desperto então num corredor sempre lotado porque vários ônibus fazem parada ali, sendo impossível estar desatenta. Vendedores ambulantes e seus gritos, músicas e jingles, pessoas conversando e chegando e indo pelas trilhas esburacadas do espaço que não descansa, até que enfim avisto o carrinho de batata-frita. Fim da calçada. Esquina. Mais alguns passos e atravesso outra praça, bem menor do que a anterior, para finalmente pegar o ônibus para meu castelo: uma cama enorme só para mim, uma arara que serve de roupeiro, um aparador onde coloco umas coisas e o notebook, a estante com dezenas de livros, o tablet com centenas de livros, um e-reading com outro tanto deles, três pares de sapatos e minha linda luminária de cabeceira...a mochila chega comigo.

O inesperado pode causar surpresa ou susto. Em mim causou dormência.

Parei no meio-fio e esperei a passagem de mais carros do que o necessário. Não moveria um pé, mesmo que quisesse. Não quereria. Quem era aquele homem!? Um ruivo alto e musculoso movia-se vigorosamente montando seu local de trabalho. Acertou o local do carrinho, agachou-se para abri-lo e retirar banquetas, acendeu o fogo, rosqueou a lâmpada e uma luz amarela iluminou mais seu rosto. Vi sua pele branca dourar tremulante até que estivesse tudo firme. Respirei. Pisquei os olhos algumas vezes, como quando precisamos acostumar os olhos ao ambiente. E, sim, eu precisava acostumar meus olhos ao que estava diante de mim. Temendo ser notada, baixei a vista e segui para casa.

Há dois caminhos possíveis: pela calçada onde fica seu carrinho de acarajé ou pelo meio da pracinha. Sendo o mais discreta possível, sempre escolhia a calçada, assim podia vê-lo mais de perto, observar algo novo. Jamais cogitei maior aproximação, nem pensava nele até que atravessava a avenida e ia em sua direção. Numa noite nada especial, por estar faminta, resolvi desconsiderar a quantidade de vezes que aquele óleo foi reutilizado e parei para comprar. Os bolinhos tinham, milimetricamente, o mesmo tamanho e a mesma cor. Após a troca de quatro ou cinco frases, cada um seguiu suas horas.

Numa sexta-feira vi o moço conversando com alguns homens. Pela primeira vez vi seu sorriso. Que sorriso lindo! Como sorria lindo aquele rosto claro e avermelhado! Não tendo mais nada a fazer na calçada, comprei um saco de batatas-fritas e comi duas antes de entregá-lo ao filho de um vendedor de CDs falsificados. O vendedor de acarajés falava com os rapazes, olhava para todos enquanto falava, mas não perdia seu carrinho de vista. Parecia uma dança, quase um acontecimento que o tão educado cozinheiro também soubesse sorrir assim. Cogitei comprar...mas não quis perder o momento então atravessei a praça olhando-o vez por outra. Mais à frente olhei para trás e observei que ainda vinha luz daquele canto da praça.

Todas as (poucas) vezes que pedia o bolinho esperava que ele apenas confirmasse comigo “Camarão?”. Assim, eu saberia ser a Rosa dO Pequeno Príncipe e não apenas “mais uma entre milhares de outras rosas”.

Era sempre:
- Oi. Um acarajé.
- Prá viagem?
- Não.
- Camarão ou frango?
- Camarão.
- Quanto é?
- Três reais. Obrigada e volte sempre. (Falado rápido, como se estivesse atendendo a uma fila de clientes)
- Obrigada! Boa noite!

Dias depois, noites depois...dias e noites depois...
- Oi. Boa noite...
- Boa noite. Acarajé?
- Você gosta mais de qual: camarão ou frango?
- Como?! Ele parou com o bolinho inteiro numa mão e a faca erguida na outra
- Qual você prefere?
Pareceu perder o fôlego por instantes, olhou para o carrinho, depois para mim, já com ar descontraído, e respondeu:
- Frango. Mas camarão também é bom!
- Um de cada. Pra viagem. Separados.
Ao colocar nos sacos de papel teve o cuidado de sinalizar o que levava o de frango. Peguei-o e devolvi-lhe esse pacote. 

Sorri e falei:
- Pra você. Boa noite!

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Era das poucas mulheres que combinam mochila e salto alto. Usava vestido e mochila. Cabelos cacheados longos e depois curtos, mantendo os fios brancos. Sua voz curta e baixa seria tímida se seu rosto fino não trouxesse o olhar seguro de quem recebe a vida a plenos pulmões. Eu sempre tinha que me curvar um pouco para ouvi-la e numa dessas vezes senti seu cheiro. Não é de perfume que falo, é de cheiro. Sua pele tinha algo que me atraía, que despertava minha curiosidade.

A pontualidade com que chegava me fazia estar à sua espera desde que o sol se punha, enquanto eu arrumava o carrinho e distribuía as cadeiras em volta dele. Sentia como se estivesse aprontando a casa para recebê-la. E então, após milhares de minutos vigiando a calçada, quando aparecia um cliente e eu me voltava para lá, ela vinha. Tão leve, parecia distraída em um mundo particular, quase sorria para todos em volta, sempre olhava em várias direções e observava o céu com frequência.

Olhava um pouco o celular e guardava-o. Passava sem me olhar, enquanto eu me concentrava em mexer a massa.

Passei a olhar o céu quando estava sozinho.
Passei a procurar nele o que ela procurava.
Passei a procurá-la nele.

Acho que era casada, mas não olhei se tinha aliança. Tinha comportamento de mulher comprometida, embora fosse simpática e educada. Na segunda vez que comprou achou que seu ônibus estava vindo então teria que correr. Adorei essa noite. Era assim. Quando ia comprar ela vinha pela calçada e ia parando devagarzinho. Se eu estivesse ocupado e não pudesse atender logo, ela não chamava, esperava cordialmente até ser atendida. Dizia boa noite num sussurro, o olhar baixo e com um sorriso meio-preso fazia o pedido. Aconteceu nesse dia que ainda estava caminhando e acho que pensou em comprar um acarajé quando viu um ônibus parecido com o seu, tocou em minhas costas, pois eu estava de frente para o carrinho e disse “Eita, desculpa, é meu ônibus!” e saiu correndo. Fiquei olhando-a sorrindo por ter se preocupado em explicar quando eu nem a tinha visto. Ela voltou! Mais linda ainda, sorrindo muito, com o rosto brilhando, dando uns saltos infantis e disse:
- Não era ele, posso pedir meu acarajé. Boa noite!
- Então vou fazer logo pra não perder seu ônibus. Frango ou camarão?


Ela sempre pedia camarão. Se comprasse mais vezes eu até poderia preparar sem que pedisse, só com sua aproximação. Na última vez que a vi ela comprou um para ela e me deu o outro, no sabor que eu disse ser meu preferido. Passei o resto da noite pensando se havia entendido direito, se poderia falar melhor com ela da próxima vez, mas não houve outra. 

A moça foi embora, levando seu cheiro e seu sorriso e me deixando exatamente como era antes dela: sozinho com meus bolinhos.

4 comentários:

Ana Paula disse...

Acho que eu queria uma continuação :)
Beijo!

Patrícia Santos Gomes disse...

Pois é, Ana, um amigo leu e disse "Pow, final triste" rsrs Mas tem um texto anterior aqui que eu ainda penso que deveria continuá-lo. Quem sabe nas férias?
Gratidão pela visita, amora!
Beijos,
Paty

Unknown disse...

Wow! Quero continuação...expendida sua preocupação com os detalhes, eh gostoso de ler, a gente entra fácil na História...repito, reitero: aguardo teu livro! Compila tudo e vai...!
Bjus e volto sempre!!!💐

Patrícia Santos Gomes disse...

Oi, Fernanda! Na continuação ele é casado, pow, é melhor deixar assim kkkkkkkk Acho que vai chegar um texto que eu vou ter paciência de trabalhar mais ou farei como vc disse: compila e vai!
Grata pela visita!