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Balas Soft |
Quando era criança morava
num bairro onde tinha “mais criança do
que gente”, como dizia minha avó.
Todos sabemos que a
criatividade de uma criança sem muitos recursos externos é imensa quando outros
fatores de sua vida são positivos. Pois lá entre nós as brincadeiras brotavam
feito capim.
Uma delas sempre me põe um
sorriso no rosto. Era assim...
Juntávamos moedas e mais
moedas. Marcávamos o dia e a hora. Chegávamos à venda da Dona Maria e todo
mundo sacava as “pratas”, que explodiam no balcão ao mesmo tempo. O balcão de
madeira fofa, já pintado tantas vezes e de tantas cores – eu mesma já o pintei
de verde – nem permitia que as moedas saltassem, no máximo algumas caíam no
chão ao se chocarem umas às outras. O barulho assustava o papagaio e aborrecia
a velha, que falava uns cinco palavrões e perguntava o que a gente queria. Seu
mau humor tinha a medida exata da sua ganância, então o tempo que levava para
nos odiar era o mesmo que usava para se recompor e procurar simpatia, dentro
sabe-se Deus de onde, para nos atender.
A empregada-filha-adotiva
começava a contar, sorrindo, enquanto as 8 ou 9 crianças que conseguiram entrar
no minúsculo espaço destinado aos clientes apontavam, aos gritos, para o pote
de confeito (sim, hoje chama “bala”, mas dizíamos confeito mesmo) Soft e iam
pedindo por cores. Sinceramente, era de enlouquecer qualquer um que, como Dona
Maria, considerava crianças umas pestes!
Sempre-sempre-sempre havia
um bêbado escorado no cantinho do balcão e esse era o principal motivo para
irmos em grupo: medo deles. Lembro que minha primeira memória de um homem ali
trazia a certeza de que era o mesmo e até cogitei que dormisse ali porque nunca
entrei naquele lugar para não o encontrar. Só descobri a verdade quando
comentei com minha mãe que Dona Maria morava com um homem e a filha adotiva.
Isso aconteceu numa noite em que Dona Maria me pediu emprestada para dormir com
ela porque Quitéria precisou viajar – e minha ME emprestou. Assim! Mas eu,
finalmente, ia conhecer a venda por dentro, então tive dez minutos para correr
para a rua e contar pra todo mundo que no dia seguinte todos saberiam o que
havia depois da cortina do corredor.
O caso é que não tinha nada
demais. Era uma casa comum, mas com quartos sem portas porque o medo dela era
tanto que precisava ficar vendo que a outra pessoa estava na cama. A senhora
era gigante de tão gorda e se não fosse isso, dizia, ela, dormiríamos na mesma
cama – dei graças a Deus por ela ser obesa, pois só gostava de dormir com minha
mãe. Havia, além de seu ronco altíssimo, um relógio antigo daqueles de filme de
terror, que ficava batendo os segundos e à meia-noite tocava doze badaladas. Depois
de acordar umas trinta vezes entre às 21h e meia-noite desisti de dormir e
peguei um dos livros da Quitéria para ler. Sendo mais velha do que todos na
rua, estava na “fase” de ler romances do tipo Sabrina, Júlia e Bianca. Odiei.
Minha fase de lê-los nunca chegou porque naquele dia saltei direto para as
biografias. Após a quarta página não me interessava por nada no livro, nada me
causava curiosidade, fosse o enredo, as descrições minuciosas ou o final da
história.
Do nada, pensei “Do que será
que Dona Maria tem tanto medo?”. Já tinha perguntado à minha mãe, quando
chorei, esperneei e gritei que não queria ir e ela, empunhando um chinelo, apelou
para minha alma benévola e caridosa. Levantei e fui andar pela casa para
encontrar alguma razão para medo além daquele maldito relógio, porque se o
problema fosse esse era só se desfazer dele ou pará-lo. Não vi nenhuma
baratinha sequer.
Dona Maria tinha medo de
“alma”, contou-me pela manhã, quando me fez comer a ração de uma dia inteiro.
Nunca vi aquela mulher tão alegre, talvez por eu ser boa múmia, “uma menina
boazinha, calminha, ótima companhia”: foi assim que se referiu a mim quando me devolveu e eu entendi de cara que seria
novamente recrutada e teria que inventar uma doença até lá.
- Dona Maria, e se aparecer
uma “alma”, o que é que a senhora vai fazer?
- Ave Maria, menina, nem
diga isso! – Então fazia o sinal da cruz e rezava alguma coisa
- Ô Dona Maria, e eu? O que
é que eu vou fazer? Eu só tenho 10 anos.
- Ah, você corre, né,
menina? Grita, pede ajuda...
Entendi, eu era a sirene.
Eu, a Quitéria e todas as crianças e adultos que dormiram com ela até um dia
desses, quando enfartou enquanto dormia, sozinha.
Fachada igual à da Venda da Dona Maria (arquivo pessoal) |
Pois há 30 anos, quando
estava vivinha, ela fazia questão de saber quantas crianças eram e nos entrega
os montinhos de confeitos igualitariamente divididos. A gente sabia que às
vezes ela roubava na conta e nos dava a menos, mas também descontávamos depois,
de alguma forma, nem que fosse atirando pedras nas portas da venda à tarde
quando o sol era muito forte e ela aproveitava para fechar tudo e cochilar.
Com nossos cristais
coloridos em mãos começava a disputa. Abríamos a embalagem e o líder do dia
gritava JÁ! e todos colocávamos a bala na boca ao mesmo tempo. Ganhava quem
passasse mais tempo com ela inteira. Ia ficando fininha, fininha, cada vez mais
transparente e era um tal de “mostra tua!” então começava a rodada de
apresentar a língua e a situação da balinha.
- PERDEEEEU! KKKKKKKK –
Gargalhada geral quando alguém não tinha nada para mostrar.
Sempre tinha o que blefava
O que dizia
ter mastigado porque queria brincar de outra coisa
O que
engoliu sem querer (quem nunca?)
O que dizia
que o seu era menor e por isso derreteu logo
E os finalistas, dentre os
quais eu geralmente estava. O medo que eu sentia de falar e quebrar a balinha,
o suspense em saber como estava a do oponente, pois às vezes ela quebrava
justamente quando íamos mostrar e os testes que eu fazia para saber em que
situações ela derretia logo: se eu falasse? Se ficasse calada? Se respirasse
pela boca? Se andasse? Nem era tanto uma questão de ser a ganhadora, mas de
esticar a brincadeira ao máximo e poder rir mais do que todo mundo. Eu não me
importava em perder, mas alguns vizinhos ficavam com tanta raiva que iam para
casa!
Tenho um amigo que ama como
se estivesse num Campeonato Eterno de Bala Soft. Daí ele ama um bocadinho,
depois deixa na geladeira para regenerar ou não derreter. Ama mais um pouco,
daí fica de boca aberta para secar a saliva. Não chega a sentir o sabor do amor
por muito tempo e já reserva para mais tarde. Talvez tenha medo de sair do
jogo, talvez seja medo de perder, talvez não queira ser engolido. Talvez nem
seja bala Soft – e ele nem percebeu.
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